Eulálio d'Assumpção, centenário orgulhoso e descendente de barão, derrama as suas memórias na cama do hospital onde a morte o espera. Repisa-as para não se esquecer de quem é: «Se com a idade a gente dá para repetir casos antigos, palavra por palavra, não é por cansaço de alma, é por esmero. É para si próprio que um velho repete sempre a mesma história, como se assim tirasse cópias dela, para a hipótese de a história se extraviar.»
À medida que a medicação e a proximidade do fim lhe vão retirando lucidez, as memórias confundem-se, assim como se confundem aqueles com quem as partilha: a enfermeira que melhor o trata, os outros enfermeiros e médicos mal-humorados, a filha, alguém que toma pelo pai assassinado há muito. Mas uma dessas memórias serve sempre de esteio a todas as outras: a do inesperado e repentino desaparecimento da sua mulher, a exuberante Matilde de «pele castanha», pouco depois do nascimento da filha de ambos.
O texto de Chico Buarque foge de um modo exímio à narrativa linear, plasmando o pensamento reinventado e confuso do velho moribundo e fixando de um modo natural o preconceito e a arrogância de um homem que se orgulha de descender de gente nobre e importante e que, apesar de tudo, não resiste aos encantos de uma bela mulata.
Leite Derramado
Chico Buarque
2009
D. Quixote
segunda-feira, 27 de agosto de 2018
segunda-feira, 20 de agosto de 2018
Adolf e Gustl
August Kubizek e Adolf Hitler conhecem-se, ainda adolescentes, quando assistem a uma ópera em Linz. Estamos no final de 1904 e é o início de uma amizade assimétrica, assente no amor de ambos pela música e numa complementaridade feliz: Adolf precisa de alguém com quem partilhar as suas ideias e fantasias, August é bom ouvinte e admira o espírito crítico e a confiança em si próprio que o outro demonstra.
No início de 1908, pouco depois da rejeição de Adolf pela Academia de Belas Artes de Viena e da morte da sua mãe, ele consegue convencer o pai de August a deixá-lo prestar provas no Conservatório em Viena. August é bem-sucedido e inicia os seus estudos musicais. Vivem juntos durante cinco meses num quarto infestado e escuro da capital austro-húngara, August seguindo uma educação formal, Adolf estudando e interessando-se literalmente por tudo, apesar de as suas paixões maiores serem a arquitectura e a política. As leituras ávidas, nos livros e na sociedade vienense, apuram o pensamento do futuro Führer.
A aversão a que o contradigam, as dificuldades económicas crescentes, talvez algum mal-estar face ao sucesso de August no Conservatório, precipitam a separação: durante uma ausência daquele, Adolf abandona o quarto que ambos partilham. O reencontro dá-se apenas trinta anos depois, após a anexação austríaca e às portas da Grande Guerra. As ideias e fantasias que Adolf erguera em jovem para o povo germânico estão em vias de concretização. E apesar de August garantir não concordar com muitas delas, é inegável ao longo do texto a amizade e a admiração que nunca deixou de sentir por Adolf Hitler.
The Young Hitler I Knew
August Kubizek
2011
Frontline Books
(Obra Original: Adolf Hitler, Mein Jugenfreund, 1953)
No início de 1908, pouco depois da rejeição de Adolf pela Academia de Belas Artes de Viena e da morte da sua mãe, ele consegue convencer o pai de August a deixá-lo prestar provas no Conservatório em Viena. August é bem-sucedido e inicia os seus estudos musicais. Vivem juntos durante cinco meses num quarto infestado e escuro da capital austro-húngara, August seguindo uma educação formal, Adolf estudando e interessando-se literalmente por tudo, apesar de as suas paixões maiores serem a arquitectura e a política. As leituras ávidas, nos livros e na sociedade vienense, apuram o pensamento do futuro Führer.
A aversão a que o contradigam, as dificuldades económicas crescentes, talvez algum mal-estar face ao sucesso de August no Conservatório, precipitam a separação: durante uma ausência daquele, Adolf abandona o quarto que ambos partilham. O reencontro dá-se apenas trinta anos depois, após a anexação austríaca e às portas da Grande Guerra. As ideias e fantasias que Adolf erguera em jovem para o povo germânico estão em vias de concretização. E apesar de August garantir não concordar com muitas delas, é inegável ao longo do texto a amizade e a admiração que nunca deixou de sentir por Adolf Hitler.
The Young Hitler I Knew
August Kubizek
2011
Frontline Books
(Obra Original: Adolf Hitler, Mein Jugenfreund, 1953)
segunda-feira, 13 de agosto de 2018
A primeira maratona de um poeta
Turb(i)-, pode ver-se no Dicionário Infopédia da Língua Portuguesa, é um "elemento de formação de palavras que exprime a ideia de agitação, desordem". À entrada do seu primeiro romance, Chico Buarque apresenta-nos algumas palavras que esse elemento integra. Entre elas: estorvo, distúrbio, perturbação, turvo, turbulência, turbilhão, trovão, atropelo, tropel, torpor, estupor, estropiar.
Um homem bate à porta. Quem será? Lembra alguém. Tem barba. Talvez o protagonista "já tenha visto aquele rosto sem barba, mas a barba é tão sólida e rigorosa que parece anterior ao rosto". Num exercício onírico em que a escrita sobressai face ao enredo, o protagonista vagueia a partir daí, em fuga ou não, em busca ou não, desistente ou não, num mundo estranho. Ou talvez apenas num mundo que é um estorvo porque estorvo são os outros, ele próprio, a vida.
O texto é o da primeira maratona de um poeta: subserviente à narração, a linguagem não dá tréguas ao leitor. Nesse sentido, aqui e ali, a surpresa de me ter evocado uma outra obra cuja filigrana me enredou há uns tempos: "Um Pinguim na Garagem" de um tal de Luís Caminha.
segunda-feira, 6 de agosto de 2018
O poder desnudado
O jovem D. Filipe, IV de Espanha, III de Portugal, encontra o paraíso nos braços da cortesã Marfisa. Saber-se-á por palavras desta que o soberano não o é em amores e que ao quarto ensaio nem chegou a arrancar. Mas também se saberá que tem potencial e que mais uns tantos encontros lhe ensinariam a agradar mulheres.
Seja como for, a perfeição para o rei foi o corpo nu da cortesã adormecida. De regresso ao palácio e guloso de beleza, faz a rainha saber que deseja vê-la nua. A novidade tem pavio curto e em breve todo o reino a comenta. E se o povo não acha nisso nada de mais, já na corte soa o alarme para as consequências que tamanho pecado teria nos destinos de Espanha. Deus não perdoa desaforos.
Com fina ironia, vocabulário original e narrativa escorreita Ballester apresenta-nos os argumentos e enredos com que clero e nobreza pretendem evitar ou promover o que para uns é pecado e para outros o simples cumprimento da natureza. As lutas de bastidores, as intrigas, a ânsia de poder, as solicitações de autos de fé são os mesmíssimos na corte dos Áustrias como em qualquer grupelho político desses em que hoje votamos.
Título: Cronica del Rey Pasmado
Autor: Gonzalo Torrente Ballester
Data da obra original: 1989
Seja como for, a perfeição para o rei foi o corpo nu da cortesã adormecida. De regresso ao palácio e guloso de beleza, faz a rainha saber que deseja vê-la nua. A novidade tem pavio curto e em breve todo o reino a comenta. E se o povo não acha nisso nada de mais, já na corte soa o alarme para as consequências que tamanho pecado teria nos destinos de Espanha. Deus não perdoa desaforos.
Com fina ironia, vocabulário original e narrativa escorreita Ballester apresenta-nos os argumentos e enredos com que clero e nobreza pretendem evitar ou promover o que para uns é pecado e para outros o simples cumprimento da natureza. As lutas de bastidores, as intrigas, a ânsia de poder, as solicitações de autos de fé são os mesmíssimos na corte dos Áustrias como em qualquer grupelho político desses em que hoje votamos.
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Autor: Gonzalo Torrente Ballester
Data da obra original: 1989
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