sexta-feira, 27 de setembro de 2019

Para ser maior

Raskólnikov leva uma vida de extrema pobreza: abandona os estudos por falta de dinheiro, encosta o sono numa almofada de roupa velha, deve já várias rendas do cubículo que habita, come quando calha. Talvez seja tudo isto o alimento para a lição que retira da História: vários grandes homens, como ele crê ser, tiveram de cometer crimes no início da vida para poder cumprir o seu destino. E fizeram-no sem hesitações nem remorsos.

Decide seguir o exemplo e assassinar uma velha agiota, um ser menor, desnecessário, prejudicial à sociedade (um piolho, nas suas palavras) e cujo dinheiro pode ser usado em seu proveito e dos outros. Já de início, no entanto, hesita. E quando finalmente se decide, comete vários erros. O maior dos quais o de assassinar também  a irmã da agiota, que entretanto surge na cena do crime, a casa onde ambas vivem. A atrapalhação é tanta que, embora retire da casa algumas jóias e uma carteira, decide escondê-las até de si próprio.

A obra é uma longa viagem pela mente de Raskólnikov, os temores e as dúvidas que antecedem e, sobretudo, se sucedem ao crime. Talvez, afinal, ele não seja o grande homem que imaginou ser. Talvez por isso mereça o castigo que merecem os homens menores. E é ele  próprio que vai de encontro, aos poucos, desse castigo. O seu percurso é, no fundo, o de descobrir que também é um piolho. E a redenção só acontece no momento em que percebe que um homem banal também pode ser amado.

Crime e Castigo
Dostoiévski
Trad.: Nina Guerra e Filipe Guerra
Editorial Presença, 2001




terça-feira, 3 de setembro de 2019

Piccolino

«Se conheço bem o meu senhor, ele não poderá passar muito tempo sem o seu anão». Quem o diz é o próprio anão, que vai descrevendo no seu diário o ódio e o nojo que sente pela espécie humana, incluindo ele próprio e os outros anões. No fundo, é o desprezo pela vulnerabilidade que perpassa este grande livro de Pär Lagerkvist (1891-1974).

Num dos antigos principados da actual Itália e numa época do Renascimento onde grassavam a fome, a guerra e a peste, o anão Piccolino é a personificação do mal. A publicação do livro em 1944 e o nosso próprio auto-conhecimento levam-nos a perceber que esse mal é intemporal. O mal é intrínseco à espécie humana.

Com Piccolino percebemos como cada um de nós tem a tendência, por mais longínqua que nos pareça, para comparar e catalogar. Para odiar o melhor porque é melhor. Para odiar o pior porque é pior. Para odiar o igual porque nos repete. Quem não tem um Piccolino dentro de si? Devemos estar sempre vigilantes para que ele não se manifeste.


O Anão
Pär Lagerkvist
Trad.: João Pedro de Andrade (original de 1944: Dvärgen)
Ed.: Antígona


Porventura

Empresários, advogados, médicos, economistas, jornalistas, ex-futebolistas, adeptos, adeptos, adeptos..., há comentadores da bola para tod...